No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.
Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.
Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.
Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio,
se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!
Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?
Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...
Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo
também afinal.
Analise:
É uma memória que faz este poema "Acaso". Ao ver
uma rapariga loura na rua ele lembra-se de si mesmo a um outro tempo - "A
outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro". Seria Durban, na
África do Sul? É bem possível. Certamente entre as raparigas de Durban muitas
seriam louras e de que outra cidade falaria Campos, senão da Durban em que
nasceu Pessoa, ou talvez a Glasgow onde teria tirado o curso de engenheiro
naval...
Seja como for, a visão remete-o para esse outro tempo. Eis
como a análise da realidade efectiva e intelectual não lhe basta e lhe dá
acesso, num conforto, a uma memória passada, a um "outro tempo “a um”
“outro eu”. Nessa confusão entre o passado e o presente Campos vê uma vantagem
- ele diz que recordar "intransigentemente" é uma vantagem que merece
ser realçada. Quer ele dizer que o facto de o seu tempo ser uma linha confusa,
sem princípio ou fim, lhe dá a impressão nítida de poder avançar ou recuar sem
justificação - tudo é válido enquanto memória e realidade.
O seu falso entusiasmo, numa intensa ironia, leva a que ele
comemore o facto de ter "a alma do avesso". Dizer isto é dizer que se
sente deslocado do tempo e da vida. Ter a alma do avesso é ter uma incapacidade
grande de enfrentar a vida sem recorrer às memórias do passado perdido. É ter
as memórias por fora da pele e por dentro uma vida que não encontra outras
personagens com a qual poderá ser partilhada.
Ao menos uma vantagem nesta "loucura" - o escrever
versos. Isto justifica o facto de Campos não querer mudar, porque se mudar
deixará de escrever versos. Deixa-se a esta média luz que o puxa para baixo.
"Porque tudo é a mesma memória", "porque tudo é a mesma
morte".
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"Adiamento"
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade
objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o
mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a
semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da
minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e
prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a
infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca
ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Analise:
O poema "Adiamento" é um poema datado de 14 de
Abril de 1928.
Este poema enquadra-se na fase "Metafísica" do
Engenheiro (1923-1930), seguindo a classificação da insigne Pessoana Teresa
Rita Lopes, na sua edição crítica das obras de Álvaro de Campos. Quer isto
dizer que já estamos numa fase posterior à grande ebulição modernista, onde os
textos de Campos exaltavam sobretudo a modernidade e a civilização, uma fase
que agora mostra sobretudo um grande cansaço e desilusão com a vida.
Este pensamento cansado, que sobretudo passa a ideia de que
nada se consegue na vida é predominante no poema "Adiamento".
Aliás, mesmo o título é o que basta para nos esclarecer
sobre o propósito do poema. Se o engenheiro modernista era alguém que presumia
que tudo se podia resumir à acção no mundo, o engenheiro metafísico diz-nos
precisamente o contrário. Nada de útil vem da acção no mundo, por isso qual é a
vontade de fazer seja o que for? Trata-se de uma anulação de toda a vontade, de
toda a acção no mundo, por ser inconsequente. "Depois de amanhã serei outro, / A minha vida
triunfar-se-á"
Na realidade a sua desilusão tem a ver com o que ele sente
que não conseguiu atingir. Este é um sentimento que acompanha Pessoa ao longo
de toda a sua vida, de que nada é conseguido, que tudo são planos vagos, sonhos
irrealistas que nunca chegam a ser concretizados. E, como nada se consegue,
mais vale que nada seja feito. O "Adiamento" é na realidade a
assunção plena desse falhanço completo na vida.
“Se a vida te falhou, falha também à vida, não a
vivendo"