Carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro sobre a Gênese dos Heterônimos
(...)
Desde criança, tive a tendência para criar em meu torno um
mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não
sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em
todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me
lembro de precisar mentalmente, em figura,
movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para
mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura
abusivamente, a vida real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de
ser um eu, tem-me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que
me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar. Lembro, assim, o
que me parece ter sido o meu primeiro heterónimo, ou antes, o meu primeiro conhecido
inexistente – um certo Chavalier de Pas dos meus seis anos, por quem escrevia
cartas dele a mim mesmo, e cuja figura, não inteiramente vaga, ainda conquista
aquela parte da minha afeição que confina com a saudade. Lembro-me, com menos
nitidez, de uma outra figura, cujo nome já não me ocorre mas que o tinha
estrangeiro também, que era não sei quê, um rival do Chevalier de Pas… Coisas que
acontecem a todas as crianças? Sem dúvida – ou talvez. Mas a tal ponto as vivi
que as vivo ainda, pois que as relembro de tal modo que é mister um esforço
para me fazer saber que não foram realidades. Esta tendência para criar em
torno de mim um outro mundo, igual a este mas com outra gente, nunca me saiu da
imaginação. Teve várias fases, entre as quais esta, sucedida já em maioridade. Ocorria-me
um dito de espírito, absolutamente alheio, por um motivo ou outro, a quem eu
sou, ou a quem eu suponho que sou. Dizia-o, imediatamente, espontaneamente,
como sendo de certo amigo meu, cujo nome inventava, cuja história acrescentava,
e cuja figura – cara, estatuto, traje e gesto – imediatamente eu via diante de
mim. E assim arranjei, e propaguei, vários amigos e conhecidos que nunca
existiram, mas que ainda hoje, a perto de trinta anos de distância, ouço,
sinto, vejo. Repito: ouço, sinto, vejo… E tenho saudades deles. (Em eu começando a falar – e escrever à
máquina é para mim falar -, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para
si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que
é afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a
história da mãe que os deu à luz.)
Aí por 1912, salvo
erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole
pagã. Esbocei umas coisas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos,
mas num estilo de meia irregularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me,
contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer
aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.) Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um
dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de
espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer
espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num
dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de
uma cómoda alta, e tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo
sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de
êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida,
e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E
o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o
nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu
mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que
foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e
escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de
Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente… Foi o regresso de Fernando
Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou melhor, foi a reacção de
Fernando Pessoa contra a sai própria inexistência como Alberto Caeiro. Aparecido
Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente
– uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente,
descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E,
de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente
um novo individuo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda,
surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o
nome que tem.
Criei, então, uma
coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências,
conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de
critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que
ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim, e parece que
assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre
Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou
nada na matéria.
Quando foi da
publicação de Orpheu, foi preciso, à última hora, arranjar qualquer coisa para completar
o número de páginas. Sugeri então ao Sá-Carneiro que eu fizesse um poema
«antigo» do Álvaro de Campos – um poema de como o Álvaro de Campos seria antes
de ter conhecido Caeiro e ter caído sob a sua influência. E assim fiz o
Opiário, em que tentei dar todas as tendências latentes do Álvaro de Campos,
conforme haviam de ser depois reveladas, mas sem haver ainda qualquer traço de contacto
com o seu mestre Caeiro. Foi, dos poemas que tenho escrito, o que me deu mais
que fazer, pelo duplo poder de despersonalização que tive de desenvolver. Mas,
enfim, creio que não saiu mau, e que dá o Álvaro em botão.. (...)
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