quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Heterónimo, Álvaro de Campos




Álvaro de Campos é um dos heterônimos mais conhecidos, verdadeiro alter ego do escritor português Fernando Pessoa, que fez uma biografia para cada uma das suas personalidades literárias, a que chamou heterônimos. Como alter ego de Pessoa, Álvaro de Campos sucedeu a Alexander Search, um heterônimo que surgiu ainda na África do Sul, onde Pessoa passou a infância e adolescência. 


No acaso da rua o acaso da rapariga loira.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar.
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loira,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loira?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...


Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isso é o mesmo também afinal.

Analise:
É uma memória que faz este poema "Acaso". Ao ver uma rapariga loura na rua ele lembra-se de si mesmo a um outro tempo - "A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro". Seria Durban, na África do Sul? É bem possível. Certamente entre as raparigas de Durban muitas seriam louras e de que outra cidade falaria Campos, senão da Durban em que nasceu Pessoa, ou talvez a Glasgow onde teria tirado o curso de engenheiro naval...
Seja como for, a visão remete-o para esse outro tempo. Eis como a análise da realidade efectiva e intelectual não lhe basta e lhe dá acesso, num conforto, a uma memória passada, a um "outro tempo “a um” “outro eu”. Nessa confusão entre o passado e o presente Campos vê uma vantagem - ele diz que recordar "intransigentemente" é uma vantagem que merece ser realçada. Quer ele dizer que o facto de o seu tempo ser uma linha confusa, sem princípio ou fim, lhe dá a impressão nítida de poder avançar ou recuar sem justificação - tudo é válido enquanto memória e realidade.
O seu falso entusiasmo, numa intensa ironia, leva a que ele comemore o facto de ter "a alma do avesso". Dizer isto é dizer que se sente deslocado do tempo e da vida. Ter a alma do avesso é ter uma incapacidade grande de enfrentar a vida sem recorrer às memórias do passado perdido. É ter as memórias por fora da pele e por dentro uma vida que não encontra outras personagens com a qual poderá ser partilhada.
Ao menos uma vantagem nesta "loucura" - o escrever versos. Isto justifica o facto de Campos não querer mudar, porque se mudar deixará de escrever versos. Deixa-se a esta média luz que o puxa para baixo. "Porque tudo é a mesma memória", "porque tudo é a mesma morte".

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"Adiamento"

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã, 
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso. 
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva, 
O sono da minha vida real, intercalado, 
O cansaço antecipado e infinito, 
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me, 
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo; 
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar, 
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo. 
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro, 
A minha vida triunfar-se-á, 
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância? 
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã, 
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

Analise:

O poema "Adiamento" é um poema datado de 14 de Abril de 1928.

Este poema enquadra-se na fase "Metafísica" do Engenheiro (1923-1930), seguindo a classificação da insigne Pessoana Teresa Rita Lopes, na sua edição crítica das obras de Álvaro de Campos. Quer isto dizer que já estamos numa fase posterior à grande ebulição modernista, onde os textos de Campos exaltavam sobretudo a modernidade e a civilização, uma fase que agora mostra sobretudo um grande cansaço e desilusão com a vida.
 Este pensamento cansado, que sobretudo passa a ideia de que nada se consegue na vida é predominante no poema "Adiamento".
Aliás, mesmo o título é o que basta para nos esclarecer sobre o propósito do poema. Se o engenheiro modernista era alguém que presumia que tudo se podia resumir à acção no mundo, o engenheiro metafísico diz-nos precisamente o contrário. Nada de útil vem da acção no mundo, por isso qual é a vontade de fazer seja o que for? Trata-se de uma anulação de toda a vontade, de toda a acção no mundo, por ser inconsequente. "Depois de amanhã serei outro, / A minha vida triunfar-se-á"
 Na realidade a sua desilusão tem a ver com o que ele sente que não conseguiu atingir. Este é um sentimento que acompanha Pessoa ao longo de toda a sua vida, de que nada é conseguido, que tudo são planos vagos, sonhos irrealistas que nunca chegam a ser concretizados. E, como nada se consegue, mais vale que nada seja feito. O "Adiamento" é na realidade a assunção plena desse falhanço completo na vida.

“Se a vida te falhou, falha também à vida, não a vivendo"

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